24 abril 2006

INSEGURANÇA

Num mundo perfeito eles se atrapalhariam bastante no início, mas depois de alguns minutos perceberiam que nem ele e nem ela quer dizer a palavra final, aquela que vai fazer com que ambos se virem, cada qual para uma direção, e sigam com suas respectivas compras. Então ela falaria primeiro; um comentário qualquer sobre a quantidade de macarrão instantâneo dele. O moço pensaria em dizer que é bem menos que a quantidade de preservativos dela, mas se calaria a tempo. Diria apenas que gosta de miojo, e estenderia a conversa discorrendo sobre a variedade de receitas que inventa. Estudando cada gesto, ela emparelharia os carrinhos e começaria a andar pelo corredor, devagar, apenas para distrair o restinho de tensão. Perguntaria se ele já cogitou trocar as seletas em conserva por legumes frescos e a conversa se estenderia. Quando se dessem conta, um já teria convidado para experimentar da culinária do outro. Fechariam acordo no macarrão dele temperado com os horti-naturebas dela. Aquelas camisinhas todas? O estoque dela não seria suficiente para terminar a primeira semana! Na quinta-feira iriam às compras juntos. Ela nunca mais faria ligações para Londres. Despacharia o noivo com uma foto dela se esbaldando no miojo com lingüiça. Especialidade do moço!

Tudo começa no domingo pela manhã, supermercado vazio, no corredor de massas.

Após anos de namoro-morando-junto a Lú cismou de conhecer novas possibilidades – na hora o moço não entendeu o que isso significava exatamente. Descobriu rapidinho que “novas possibilidades” era eufemismo para pé na bunda. Solteiro, sem grandes habilidades na cozinha o jeito foi se acostumar a jantar macarrão instantâneo. Raramente aceitava os convites da irmã que morava do outro lado da cidade. De segunda a sexta o almoço não era problemas, apesar de insosso, típico de refeição em grandes volumes, o cardápio era elaborado pela nutricionista da empresa. No jantar e finais de semana forrava o estômago com macarrão-água-tempero pronto. Às vezes enjoava do macarrão instantâneo e passava o fim de semana tomando vitaminas de frutas com aveia. Segunda-feira retornava ao prato-pronto na empresa e prato-rápido em casa. Nessa rotina o moço foi se especializando no miojo à moda da casa, um dia misturava com sardinhas em conserva, outro dia esperava esfriar e temperava com maionese, depois experimentou com seleta de legumes; ovos; carne moída; bacon. Após meses de experiências fazia molhos fantásticos, dignos dos melhores chef’s italianos, para incrementar seu macarrão instantâneo. Sem saber que culinária chinesa autêntica já seria ofensivo, tentou impressionar uma paquera nissei e cometeu o sacrilégio de fazer yakisoba com o miojo. Sexta-feira passada fez dois meses que a japinha saiu do apartamento prometendo ligar. Nunca ligou.

A quantidade de pacotes de macarrão instantâneo chamou a atenção da moça, também fazendo compras: “Tão bonitinho e ainda solteiro? Deve ser gay” – deduziu. Mas, como não tinha nada a ver com as preferências alimentares do moço, deu de ombros e seguiu com suas compras.

Na esquina do corredor de enlatados trombou carrinhos com o bonitinho-solteiro-gay. Esboçou um sorriso de desculpas pelo semi-atropelo e se admirou com a quantidade de latas: “Coitado, só ingere químicas”. Desviou e seguiu adiante como se a mente já estivesse no próximo item da compra, mas o pensamento cobiçava: “Boca gostosa! Merecia ser alimentada melhor” e se imaginou na Roma antiga, sem pudores, em decúbito dorsal, cortesã, ofertando uvas verdes diretamente nos lábios do bonitinho-solteiro. “Que imaginação doentia! – ela mesma se passou a reprimenda. Sempre no mundo da lua, inventando situações ridículas, sonhando acordada... Quem manda querer namorar à distância? Aquele desavergonhado deve estar se esbaldando no assanhamento das inglesas mal-amadas, loucas por um latino, moreno, cheio de ginga e tempero... Filas de branquelas sem sal e sem açúcar caindo na lábias do safado, uma por uma abrindo as pernas finas para o galinha...”.

- CACHORRO!

“Culpa da imaginação! Agora o bonitinho-gay está achando que sou uma louca”. Disfarçou e saiu empurrando o carrinho sem pegar uma só lata de conservas. Ele lá, parado, tentando entender o por quê do xingo. “Mania de falar sozinha. Preciso mesmo me cuidar! Um analista... Que terapia que nada. Preciso mesmo é de um homem. Perto! Coladinho! Juntinho, fazendo dengo, trocando carinhos, beijos... dormindo de conchinha igual a Paula. Quanto tempo faz que eu não beijo? Desde que o safado-galinha-dissimulado inventou de fazer especialização. Para ser bom fotógrafo não precisa atravessar o oceano. Quem é bom de verdade faz um curso no Senac e pronto! Tantas coisas esperando para serem fotografadas aqui no Brasil e o desgraçado vem com essa conversa fiada de curso em Londres? Durante seis meses? Ainda fala que vai passar rápido. Cachorro!”.

Na despedida o noivo dissera que seria só o tempo de acumular a saudade e o tesão... Pediu para ela ir pensando na volta, na farra que eles fariam! Seis meses depois, por telefone, informou que tinha conseguido uma bolsa para o curso mais fantástico que já tivera a oportunidade de conhecer! Desligou depois que esticou a temporada para um ano. Fazia três meses que vencera o ano e nada de retornar. O último telefonema foi para avisar que ficaria mais três meses.

“Eu tenho que subir pelas paredes mais noventa dias??? Safado, safado, safado! Tá pensando o quê? Mulher também sente falta!!! Um ano e seis meses sem dar sequer um beijinho?? Tonta! Quem manda você ser caxias, toda certinha?? Ninguém mais é fiel nesse mundo. A Paula trepou com todo mundo no departamento e ainda diz na maior-cara-de-pau que ama o marido. O trouxa nem desconfia. Certa ela! Passa a tarde inteira dando pro amante e a noite ainda tem o marido para dormir de conchinha. E eu aqui, fiel feito uma mula empacada, acumulando tesão, sendo torturada até em sonhos enquanto o canalha deve estar se esbaldando com todas aquelas branquelas, sardentas, de nariz empinado e quadril quadrado. Desgraçado! No início ligava dia sim, dia não. Agora as ligações são quinzenais e cronômetradas. Cafajeste!!!”

No corredor de higiênicos ela para de se recriminar e se concentra novamente nas compras. Vê o bonitinho-solteiro dando sopa lá no outro extremo. Como quem não quer nada, esquecida do xingo à pouco, vai empurrando seu carrinho, de olho nos produtos das gôndolas, até chegar perto. “Comprando anticaspa? Credo...” – desdenhou, mas não saiu de perto. Quando o moço dá dois passos em sua direção ela disfarça, pega alguns produtos e finge nem perceber a presença dele. De repente sente que o bonitinho a encara. Então faz pose e levanta os olhos fingindo naturalidade. Ele a encara sim, porém, com ares de assombro.

“O que é que eu fiz agora?” – pensa. Baixa os olhos para os produtos em sua mão e os dedos, involuntariamente, se abrem deixando escapar dezenas de preservativos. A mercadoria se espalha aos seus pés. “Meu Deus! Vai pensar que sou uma depravada”. Não sabe se agacha e recolhe as camisinhas ou se sai correndo, largando o carrinho e tudo. “Se não fossem os genes afros da vó Alminda o meu rosto agora estaria mais vermelho que a cabeça de um pau... JESUS-AMADO! Que tipo de comparação é essa?”. Agacha e começa a recolher os envelopes de preservativos antes que pense, ou pior, cometa mais alguma idiotice.

De repente enxerga as mãos dele ajudando, juntando envelopes. Não tem coragem de levantar os olhos, percebe quando o moço fica de pé e deposita bem uma dúzia de preservativos dentro do carrinho dela. Ela ainda de cócoras vira-se para o outro lado, pega alguns mais distantes. “Chão limpo, hora de me erguer e agradecer... Cara de paisagem! Isso, faz cara de paisagem, de mulher segura, independente... Preciso me levantar. Preciso me levantar. Preciso... LEVANTA LOGO SUA BURRA!”. O salto escorrega e quase a derruba.

O moço não sabe bem o que fazer, se a ampara, se fala algo, se vai embora. Ela o xingou de cachorro dez minutos antes, e tudo que ele estava fazendo era escolhendo uma azeitona em conservas. “Pode até ser louca, mas é uma doida encantadora”. Apesar do receio que ela lhe agrida verbalmente – “Sabe-se lá que tipo de maluca tenho pela frente”, ele sorri tentando parecer gentil.

A cara de doida-estúpida se desmancha e ela fica quieta, parece indecisa entre atirar os preservativos na cara dele ou chorar. Termina por depositar as camisinhas dentro do carrinho. "Melhor pensar que sou uma devassa que carente!"

“Putz!! Aonde é que ela vai usar tantas camisinhas?”. Distraído ele fica olhando a moça se recompor. Ela passa a mão pelos cabelos, ajeita o blusão e continua muda. “Melhor eu sair de perto” – ele decide, e já está se virando quando ela balbucia alguma coisa.

- Como?

- Nada! Quero dizer, obrigada.

- Não por isso.

“Não por isso? – ele se desespera – Estúpido, de onde foi que você tirou esse tipo de resposta? Não por isso! Isso o quê? Pensa algo melhor para dizer ou vai continuar batendo punheta por mais dois meses, seu imbecil”.

Ela já se sente menos estúpida sem saber o por que. Olha para a boca dele e pensa o quanto seria gostoso beijá-la. “Magro, alto, olhos cor de mel, dentes bonitos, as mãos são grandes, o dedo é grosso... Como é mesmo aquele funk? “...Tô ficando atoladinha/tô ficando atoladinha...”! QUIETA!! Pense em algo inteligente para dizer”.

Não pensam. O mundo não é perfeito. Ficam alguns segundos, um de frente para o outro. A moça deseja encontrar um bom motivo para não beijá-lo. Ele pensa num modo mágico de levá-la para casa, de usar com ela todas aquelas camisinhas. Ela balbucia novamente uma interjeição qualquer, se vira e vai continuar suas compras. Ele espera mais alguns segundos: "Ainda há tempo para um milagre". Nada acontece e o moço toma o rumo do caixa.

Talvez seja melhor dar chances para um final feliz...

Antes de pagar suas compras ele se dá conta que faltou pegar o requeijão. E lá no corredor de laticínios a moça está indecisa: margarina ou manteiga?

3 comentários:

  1. Vou começar a achar que vc escreve especialmente pra mim... rsrrs e assim sou plenamente especial!

    bjs.

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  2. lingua portuguesa


    huhuhuhuhuhuhu...esse texto...esta muito bom...eh vc quem escreve

    muito show

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  3. ó céus! ó dor! que é isso meu amigo? já vi este filme antes,
    acorda Alice! faz voltar o tempo faz! Beijão

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