12 maio 2009

PACOTE - Uma história de amor

Nas minhas lembranças de infância papai sempre foi sisudo, sistemático ao extremo. Seu sorriso era uma dádiva rara que desde cedo aprendi a associar a alguma conquista que ele, automaticamente, transformava em guloseimas e compartilhava com os filhos. Sabia ser bom pai para seus sete filhos, só não sabia sorrir com freqüência. Por isso, quando lançava seu riso maroto seus herdeiros retribuíam risinhos à espera de doces, biscoitos ou qualquer outro mimo que certamente ele trazia escondido no paletó.

Eu devia ter entre sete e oito anos de idade quando papai chegou em casa com um pacote pardo nos braços e um sorriso nos lábios. Quase que de imediato as sete bocas infantis salivaram gulosas ao redor do pacote depositado sobre a mesa. Mas para surpresa geral o embrulho se mexeu. “Algodão-doce vivo?” — juro que foi isso que pensei no primeiro minuto de surpresa. A expectativa durou poucos segundos, foi só o tempo do latido ecoar pela casa para eu e meus irmão explodirmos num misto de risos e gritos. Se o próprio fez o favor de estragar a surpresa, não estragou a satisfação do meu pai que retirou o filhote de dentro do saco de papel e passou de filho em filho até todos os pares de olhos e mãos estarem certificados de que havíamos ganhado um cãozinho. Cachorro de verdade! O nome? Não encontramos nada mais apropriado que Pacote. E Pacote ficou.

No início o filhote latia por nada, era teimoso, bagunceiro, tão criança quanto eu e meus irmãos. Já na primeira semana mamãe se aborreceu com a novidade e sentenciou que por ela o Pacote retornaria ao seu lugar de origem. Só não foi devolvido porque sete crianças convencem qualquer mãe a aceitar qualquer coisa, até um filhote de cão. Mamãe nunca foi uma mãe qualquer, mesmo assim cedeu. Impôs uma condição: cachorro dentro de casa, jamais! Depois que o Pacote ficou adulto latia apenas o essencial para dar algum aviso. Acredito que reservava suas energias para as crianças da família, pois brincava por quanto tempo agüentássemos.

Atento a nós e ciente de suas responsabilidades, desde cedo mostrou ser guardião diligente, jamais deixou um estranho ultrapassar os limites da porteira. Quem quisesse entrar que chamasse e aguardasse permissão dos donos da casa. Uma única vez, apesar do tanto de estranhos entrando e saindo de nossa casa a noite inteira, deitou-se e guardou silêncio. Pareceu entender que sua família perdera um ente querido e que dessa noite em diante, apenas seis crianças fariam parte da algazarra diária. Lembro de mamãe esgotada de dor dormindo no sofá, papai permitindo que meus irmãos fossem dormir na casa de vizinhos, Pacote em vigília ao meu lado assistindo papai chorar pela primeira vez. Depois dessa noite papai não me pareceu tão sistemático quanto antes e concluí, numa ingenuidade própria de menino, que se um homem chora diante do seu cão não tornará a ser o mesmo quando lhe secarem as lágrimas.

O Pacote ficou na família por mais de dez anos. Foi companheiro fiel de cada um dos integrantes e o primeiro a contestar a lei da física. Só assim para explicar a fórmula que permitia ele estar com todos ao mesmo tempo. Mamãe precisava pegar um frango? Pacote estava correndo sobre o galináceo escolhido e o segurava, sem machucar, até que recebesse a ordem para largar. Papai devia ir à cidade buscar sal, querosene ou arame? Pacote era companhia imediata. A segurança dos filhos até a escola rural era garantida pelo cão. Nenhum ser vivente se atrevia a cruzar nosso caminho. Nem mesmo um calango! Certa vez defendeu-me de um menino que tentou roubar meu álbum de figurinhas quase completo do campeonato brasileiro. Noutra, despachou um pretendente que tentava abraçar minha irmã. Esse episódio virou lenda familiar, principalmente porque minha irmã se casou com o despachado: “primeiro teve que pedir a mão dela ao Pacote”. Não precisava morder, bastava arreganhar os dentes e rosnar para que qualquer um mudasse a prosa e o rumo. Nem era tão grande, só que sabia impor respeito. Também sabia respeitar. Com ele só se ordenava uma vez. Nas noites de julho e agosto ele se aninhava ao pé do fogão a lenha, buscando um pouco mais de calor para combater o inverno mineiro. Era a única época que dormia dentro de casa, nos demais meses do ano seu lugar era ao relento, condição imposta desde os primórdios pela dona da casa. Ele aceitava sem reclamação.

Eu me tornei adolescente e o Pacote envelheceu. Tão despretensioso como chegou e viveu, ele se foi. Não sofreu, não deu trabalho e nem chance a veterinário algum. Não gostava que lhe botassem as mãos, permitia aos adultos da família algum carinho na cabeça, mais nada, saia de perto se insistissem. Mas as crianças podiam tudo, até lhe fazer de cavalo... Era noite de verão, porém, como ninguém da família se dispôs a lembrá-lo a única regra da casa, o Pacote dormiu aos pés do fogão. Na madrugada, quando mamãe quis reavivar o fogo ele simplesmente não acordou. Pela manhã enquanto cavava um túmulo no quintal meu pai, que ainda era um tanto sisudo, chorou pela segunda vez. Sobre a cova, por falta de flores, eu plantei uma rama de batata-doce. Os meses passaram e a pequena rama se espalhou pelo chão e deu tantas batatas quanto poderia. Não lembro se foi assim, mas me pareceu que para cada batata-doce que rachava o chão papai soltava um comentário engraçado até os sorrisos se tornarem freqüentes e sua circunspeção sumir totalmente, no entanto, permanecemos fiéis à memória do nosso cão e todas batatas se perderam na terra. Ninguém da família teve coragem de comer batata-doce do Pacote, como chamávamos.

Assim, os meses se transformaram em anos, os anos em recordações e as recordações em vestígios. Dos integrantes da família, apenas papai e mamãe moram na mesma casa. Talvez eles não se lembrem, mas sempre que os visito vejo o monturo de terra marcando o local onde o Pacote foi enterrado. Das batatas não resta uma só rama. Sei que com o passar dos anos quase tudo daquela época vai se apagar na minha memória, minhas recordações vão se perder como papai perdeu sua sisudez — sem que eu me apercebesse, e essa história quero manter viva, escrita, impressa em algum lugar como sendo minha melhor lembrança de amor e fidelidade.

4 comentários:

  1. Nossa, eu chorei tanto! Você descreveu coisas semelhantes sobre minha vida: o pai sisudo, a família grande e o meu cachorro, um pastor alemão fiel que se foi na minha garotice que deixou tanta saudade... Beijoquinhas. ;Dja

    ResponderExcluir
  2. ...E com certeza, essa é uma das melhores estórias que já li!!! Muito bacana o sentimento transbordando letra a letra!!! Pense num texto tampa de crush!!! Beijocas de LILLY

    ResponderExcluir
  3. Passeando por aqui,
    encontrei este texto que é tão bonito,
    parece tão espontâneo,
    e que li, reli, visualisando toda a história...
    Lindo mesmo, e superbem escrito, flui e envolve a gente...

    Parabéns !
    :~)

    ResponderExcluir
  4. alessandra21/1/13 15:04

    Olá, minha cachorrinha é MUITO igual ao que está postado na foto, chega a ser assustador ! Gostaria que me enviasse um e mail pra que eu enviasse uma foto da minha Stacey.

    ResponderExcluir

NOTÍCIAS DO LADO DE LÁ

Morreu Juvânia. Obviamente filha de Juvenal da padaria e Vânia do lar ( numa época em que existia lar nas casas ). A morte dela me ating...