23 maio 2009

LENDAS DA MADRUGADA


Pensei ter esboçado um sorriso e, pior, ter deixado escapar "Prazer, Teseu!", imediatamente após ela abrir os lábios e soltar por entre a fileira de dentes, "Ariadne".

Apenas sorri. Não disse meu nome. Se a moça soubesse as lendas dos deuses e heróis gregos - o que não seria difícil, poderia soar como uma insinuação de que em nossos destinos já éramos amantes. Nem inventei um codinome, apesar de parecer grosseiro. Da portaria o Minotauro observava todos meus movimentos, e eu os dele. Possivelmente eu era o único que usava jeans e tênis no local, motivando atenção especial do segurança. Que observasse!



A boate bem poderia ser chamada de labirinto, com seus quartos, corredores e reservados onde a fome de semideuses era aplacada entre gemidos e sussurros. Deixei o Minotauro fazer seu papel e voltei toda minha atenção para Ariadne, que tecia seu novelo exibindo dengos, curvas e meneios. Pernas longas, pescoço fino, cabelos fartos, seios pequenos e cintura à mostra. Ela dominava bem as artes da sedução, hábil tecelã. Perguntei seu preço já querendo me rebelar contra Minerva se esta me interrompesse os sonhos ordenando que abandonasse Ariadne. Seu preço, sussurrado como se fosse um segredo explicava as perfeições das moças, dos tapetes, das bebidas, dos meus iguais metidos em ternos e da preocupação do Minotauro que ainda duvidava de minha sinceridade, ou possibilidades financeiras, e não tirava os olhos dos meus tênis.

Ridículo me confrontar - pensei, eu já o vencera em batalhas passadas e o venceria novamente. Eu me deitaria com Ariadne (era o destino se repetindo através dos séculos?).

"Por esse valor, quanto tempo você fica comigo?" - perguntei comparando o castelo de Dédalo com os inferninhos onde eu gastava poucas moedas a cada meia hora.

"Três horas. Mas se ultrapassarmos o período podemos negociar". Era até covardia jogar com cartas marcadas, mas mesmo assim brinquei com as possibilidades de enfurecer o segurança. Demorei-me no flerte com Ariadne, beijei sua nuca, apalpei os seios descaradamente, aqueci as mãos entre suas coxas e o final foi como deveria ser. Ela me entregou o novelo e eu entrei no labirinto.

Já estava escrito que o Minotauro seria derrotado e Ariadne abandonada na ilha de Naxos. Afinal, Tróia e Helena me esperavam num futuro repetitivo.

18 maio 2009

JOANA

- VACA!!!

Xinguei e dei o tapa com raiva, mas não ouvi o estalo emitido pela palma da minha mão. O som breve e seco foi levado para o inconsciente e nalgum lugar da mente, meus sentidos despertaram um prazer antigo, gozado ainda menino, todas as vezes que papai matava porco no sítio.

Para os moleques da família o pernil suíno tinha a mesma consistência e volume dum corpo adversário, excelente para treinar os golpes certeiros, decisivos, daqueles capazes de definir uma luta na saída da escola. Por isso, enquanto esperava que os homens da casa retalhassem as carnes, separando gorduras, ossos e couro, o traseiro de porco, pendurado num dos galhos da mangueira, substituía as fuças dos inimigos imaginários - apanhava pelo Pedrinho, aquele fidumaégua. Meus primos treinavam murros e também me ensinavam a fechar a mão corretamente na hora de socar. O polegar devia firmar os demais dedos, os cotovelos levemente abertos e os ombros posicionados. O punho esquerdo servia para tirar a atenção do adversário enquanto o soco direito era arremessado forte, sem dó! Mas esmurrar o pedaço de porco não era meu passatempo predileto. Eu peguei gosto mesmo em estapear o quarto traseiro de suíno. A palma aberta, os dedos juntos, levemente arqueados para emitir som, a mão elevada pouco acima da orelha direita e sendo desferida num ângulo reto, descendente. Uma obra de arte! Eu tinha jeito pra coisa. O tapa saia forte, o estalo doía na palma e a mão gozava, sentindo o tremor da carne gemendo, se abrindo e acomodando a agressão. Eufórico, recepcionando no tato o frio estremecer do couro esbranquiçado a cada golpe desferido, eu batia, e batia, e batia.

O rosto branco da Joana estampava os contornos dos dedos e os vincos da minha mão. Era a primeira vez que eu batia numa mulher. Olhos arregalados ela ainda estava assimilando a agressão quando repeti o tapa. Eu nem lembrava mais o motivo da raiva, do xingo e do tapa inicial. O prazer tomara posse de mim e sobrepujara todos sentimentos e emoções quando minha mão afundou na carne quente, macia e aconchegante pela segunda vez. Dessa vez sem xingo! Só para confirmar que a cara da Joana era incrivelmente melhor de se estapear do que a bunda fria de um leitão. Redescobri algo em que eu era bom, eu ainda levava jeito. Eu quis, até pensei em repetir, sentir novamente a mão estalando gostoso na bochecha morna da Joana, mas não tive tempo.

- VACO!! - e a mão espalmada encheu minha cara de estalo, dores e calores.

Joana reagiu mais por susto. Estava tão surpresa, agoniada e assustada quanto eu, mas acredito que não foi a dor, nem a coragem, que a fez devolver o tapa e o xingo. Foi sua dignidade. Ela tinha essa coisa de equivalências, direitos iguais, dente por dente ou olho por olho. Tudo para ela tinha que ser nas mesmas condições... Mas eu já tinha pegado gosto! Durante um bom tempo, mesmo sabendo que Joana ia retribuir, eu metia a mão na cara dela.

12 maio 2009

PACOTE - Uma história de amor

Nas minhas lembranças de infância papai sempre foi sisudo, sistemático ao extremo. Seu sorriso era uma dádiva rara que desde cedo aprendi a associar a alguma conquista que ele, automaticamente, transformava em guloseimas e compartilhava com os filhos. Sabia ser bom pai para seus sete filhos, só não sabia sorrir com freqüência. Por isso, quando lançava seu riso maroto seus herdeiros retribuíam risinhos à espera de doces, biscoitos ou qualquer outro mimo que certamente ele trazia escondido no paletó.

Eu devia ter entre sete e oito anos de idade quando papai chegou em casa com um pacote pardo nos braços e um sorriso nos lábios. Quase que de imediato as sete bocas infantis salivaram gulosas ao redor do pacote depositado sobre a mesa. Mas para surpresa geral o embrulho se mexeu. “Algodão-doce vivo?” — juro que foi isso que pensei no primeiro minuto de surpresa. A expectativa durou poucos segundos, foi só o tempo do latido ecoar pela casa para eu e meus irmão explodirmos num misto de risos e gritos. Se o próprio fez o favor de estragar a surpresa, não estragou a satisfação do meu pai que retirou o filhote de dentro do saco de papel e passou de filho em filho até todos os pares de olhos e mãos estarem certificados de que havíamos ganhado um cãozinho. Cachorro de verdade! O nome? Não encontramos nada mais apropriado que Pacote. E Pacote ficou.

No início o filhote latia por nada, era teimoso, bagunceiro, tão criança quanto eu e meus irmãos. Já na primeira semana mamãe se aborreceu com a novidade e sentenciou que por ela o Pacote retornaria ao seu lugar de origem. Só não foi devolvido porque sete crianças convencem qualquer mãe a aceitar qualquer coisa, até um filhote de cão. Mamãe nunca foi uma mãe qualquer, mesmo assim cedeu. Impôs uma condição: cachorro dentro de casa, jamais! Depois que o Pacote ficou adulto latia apenas o essencial para dar algum aviso. Acredito que reservava suas energias para as crianças da família, pois brincava por quanto tempo agüentássemos.

Atento a nós e ciente de suas responsabilidades, desde cedo mostrou ser guardião diligente, jamais deixou um estranho ultrapassar os limites da porteira. Quem quisesse entrar que chamasse e aguardasse permissão dos donos da casa. Uma única vez, apesar do tanto de estranhos entrando e saindo de nossa casa a noite inteira, deitou-se e guardou silêncio. Pareceu entender que sua família perdera um ente querido e que dessa noite em diante, apenas seis crianças fariam parte da algazarra diária. Lembro de mamãe esgotada de dor dormindo no sofá, papai permitindo que meus irmãos fossem dormir na casa de vizinhos, Pacote em vigília ao meu lado assistindo papai chorar pela primeira vez. Depois dessa noite papai não me pareceu tão sistemático quanto antes e concluí, numa ingenuidade própria de menino, que se um homem chora diante do seu cão não tornará a ser o mesmo quando lhe secarem as lágrimas.

O Pacote ficou na família por mais de dez anos. Foi companheiro fiel de cada um dos integrantes e o primeiro a contestar a lei da física. Só assim para explicar a fórmula que permitia ele estar com todos ao mesmo tempo. Mamãe precisava pegar um frango? Pacote estava correndo sobre o galináceo escolhido e o segurava, sem machucar, até que recebesse a ordem para largar. Papai devia ir à cidade buscar sal, querosene ou arame? Pacote era companhia imediata. A segurança dos filhos até a escola rural era garantida pelo cão. Nenhum ser vivente se atrevia a cruzar nosso caminho. Nem mesmo um calango! Certa vez defendeu-me de um menino que tentou roubar meu álbum de figurinhas quase completo do campeonato brasileiro. Noutra, despachou um pretendente que tentava abraçar minha irmã. Esse episódio virou lenda familiar, principalmente porque minha irmã se casou com o despachado: “primeiro teve que pedir a mão dela ao Pacote”. Não precisava morder, bastava arreganhar os dentes e rosnar para que qualquer um mudasse a prosa e o rumo. Nem era tão grande, só que sabia impor respeito. Também sabia respeitar. Com ele só se ordenava uma vez. Nas noites de julho e agosto ele se aninhava ao pé do fogão a lenha, buscando um pouco mais de calor para combater o inverno mineiro. Era a única época que dormia dentro de casa, nos demais meses do ano seu lugar era ao relento, condição imposta desde os primórdios pela dona da casa. Ele aceitava sem reclamação.

Eu me tornei adolescente e o Pacote envelheceu. Tão despretensioso como chegou e viveu, ele se foi. Não sofreu, não deu trabalho e nem chance a veterinário algum. Não gostava que lhe botassem as mãos, permitia aos adultos da família algum carinho na cabeça, mais nada, saia de perto se insistissem. Mas as crianças podiam tudo, até lhe fazer de cavalo... Era noite de verão, porém, como ninguém da família se dispôs a lembrá-lo a única regra da casa, o Pacote dormiu aos pés do fogão. Na madrugada, quando mamãe quis reavivar o fogo ele simplesmente não acordou. Pela manhã enquanto cavava um túmulo no quintal meu pai, que ainda era um tanto sisudo, chorou pela segunda vez. Sobre a cova, por falta de flores, eu plantei uma rama de batata-doce. Os meses passaram e a pequena rama se espalhou pelo chão e deu tantas batatas quanto poderia. Não lembro se foi assim, mas me pareceu que para cada batata-doce que rachava o chão papai soltava um comentário engraçado até os sorrisos se tornarem freqüentes e sua circunspeção sumir totalmente, no entanto, permanecemos fiéis à memória do nosso cão e todas batatas se perderam na terra. Ninguém da família teve coragem de comer batata-doce do Pacote, como chamávamos.

Assim, os meses se transformaram em anos, os anos em recordações e as recordações em vestígios. Dos integrantes da família, apenas papai e mamãe moram na mesma casa. Talvez eles não se lembrem, mas sempre que os visito vejo o monturo de terra marcando o local onde o Pacote foi enterrado. Das batatas não resta uma só rama. Sei que com o passar dos anos quase tudo daquela época vai se apagar na minha memória, minhas recordações vão se perder como papai perdeu sua sisudez — sem que eu me apercebesse, e essa história quero manter viva, escrita, impressa em algum lugar como sendo minha melhor lembrança de amor e fidelidade.

09 maio 2009

CALOTEIRO

Semana do meu casamento. Estava cheio de compromissos e ainda faltava comprar alguns móveis. Na verdade ainda estava com todos os eletrodomésticos por comprar. Foi neste clima de ansiedade e aperto que recebi uma proposta inusitada. Veio do Gérson, um colega de trabalho:

- Se você quiser, podemos fazer uma troca. Eu compro todos os eletrodomésticos que faltam na sua casa, e mais alguns que você nem pensava comprar, e você me dá sua moto.

- Como assim? Os eletrodomésticos custariam bem mais que minha moto!

- Tudo bem. Eu fico com o prejuízo.

- Bebeu?

- Fica como se fosse o meu presente de casamento. É pegar ou largar...

Peguei.

No dia seguinte fomos às compras. Eu, a futura esposa e o bom samaritano. Geladeira dúplex, fogão seis bocas automático, videocassete, televisão 29polegadas, aparelho de som, lava-roupas, secadora, microondas, lava-louças e até uma TV 14polegadas para deixar no quarto. A conta final excedeu em quase três vezes o valor da moto. Protestei:

- Pô Gérson, ficou caro demais. Não posso aceitar!

- Podemos deixar a TV 14polegadas, a lava-louças, o microondas e a secadora... - a futura esposa, barrigudinha de seis meses tentou ajeitar as coisas.

- Nem pensar! Vocês escolheram e vão levar tudo.

O amigo, a essa altura quase um irmão, não estava disposto a regatear e como diziam meus avós: "em cavalo dado não se olha os dentes"'. Aceitamos. Aquele surto de loucura poderia passar, mas se depois de algum tempo ele viesse reclamar eu pagaria metade das prestações. Sim. Tudo foi financiado em várias prestações, porém, como o salário dele não era maior que o meu cada um dos objetos rendeu um carnê de crediário distinto. Cada eletrodoméstico foi adquirido numa loja diferente.

A festa foi pequena. Gente pobre tem mania de reunir amigos e parentes em torno de um evento e chamar de festa. A alegria foi enorme. E a casa? Completa. Não faltou nenhum aparelho de utilidade doméstica. Os utensílios pequenos ficaram por conta dos parentes. Desde a panela de pressão até o tapetinho na porta de entrada, tudo veio de presente. Só em copos ganhamos dezoito jogos completos! Duas semanas depois do casamento o Gérson bateu na porta de casa. Atendi já fazendo cálculos e contas, conciliando parte das prestações com o salário que eu tinha na época. Mas ele estava sorridente. "Muita calma - pensei - espere que diga a que veio". Relaxei e esperei a ladainha. O visitante ilustre conheceu a casa, ouviu umas músicas no aparelho que ainda tinha muita prestação por vencer, assistiu os melhores lances do Corinthians na TV. Abriu várias vezes a geladeira duplex em busca de cerveja estupidamente gelada, e só então me convidou para conhecer seu carro novo, estacionado na frente da minha garagem. Fiquei surpreso ao ver o modelo zero quilometro.

Eu ainda estava em férias, talvez o Gérson tivesse ganhado uma promoção, ou então ele tinha ganhado uma bolada na loteria, ou estava metido com aqueles elementos da rua de baixo, ou... Eu quis saber de onde tinha vindo tanto dinheiro e ele não se fez de rogado:

- Pedi para ser demitido na semana do seu casamento. Peguei o FGTS, juntei com os direitos trabalhistas e deu uma boa grana. Boa parte eu dei na troca da moto por esse carrão.

- Arrumou outro emprego? - perguntei só para disfarçar minha inveja.

- Que nada. Estou de saco cheio de São Paulo. Volto amanhã para minha terra e por isso passei aqui, para dar um tchau. Não queria ir sem me despedir de você, meu colega de serviço, um puta amigo que me ajudou muito quando cheguei em Sampa.

Comovido com a demonstração de amizade eu quis esboçar um comentário, mas o Gérson não permitiu que o interrompesse e continuou:

- E também quero pedir um favor; se alguém perguntar onde estou, qual é a cidade que meus pais moram ou coisa parecida, diga que não sabe. Segura essa?

- Tudo bem, mas por que esse mistério?

- Algumas pessoas vão me procurar e não quero ser encontrado.

Pronto! Estava envolvido com os tais elementos da rua de baixo.

- Porra Gérson! Como você foi se meter nessa enrascada?

- Do que você está falando?

- Estou falando de você se envolver com traficantes.

- Bebeu? Eu estou limpo. Não me meto com bandido não!

- Então está fugindo do quê?

- Dos cobradores! Casas Bahia, Pernambucanas, Lojas Marabrás, Kolumbus, Extra... Todo mundo levando calote.

- Caralho!!!

Não é incomum que um homem converse com outro homem falando palavrão para mostrar que é homem, mas nem era esse o caso. O palavrão foi a única coisa que consegui dizer quando entendi a situação.

Ele ficou um bom tempo passeando de carro novo e fazendo sucesso com as conterrâneas, lá no nordeste. Depois vendeu o carro e juntou toda grana que tinha para montar um boteco na beira da praia. Dois anos atrás, quando os protestos/SPC-SERASA caducaram, ele me escreveu dizendo que ia deixar o pai cuidando do bar e voltar para São Paulo. Sujeito bom de conversa, boa aparência e ficha limpa na praça, não demorou muito para encontrar um bom emprego com um bom salário. Mora do outro lado da cidade e faz questão de manter a nossa amizade, por isso aceito seus convites para almoçarmos. Conversamos, bebemos, rimos e sobre o calote nem um pio. No último encontro, na saída do restaurante, olhou meu carro como se fosse um comprador e perguntou com sincero interesse:

- Você não está precisando trocar seus móveis?

Entrei no carro e fugi antes que a tentação me fizesse responder que sim
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NOTÍCIAS DO LADO DE LÁ

Morreu Juvânia. Obviamente filha de Juvenal da padaria e Vânia do lar ( numa época em que existia lar nas casas ). A morte dela me ating...